O tsunami estético que varre a medicina
Por: Evaldo D´Assumpção*
O século XXI trouxe diversos e verdadeiros tsunamis que estão arrasando com a antiga e cultuada Arte Hipocrática, mais conhecida como “medicina”.
Formado há 60 anos na Faculdade de Medicina da então UFMG, e hoje aposentado, exerci a medicina por 50 anos. Hoje, recordo-me, com dorida saudade, dos meus 40 primeiros anos, quando a medicina era exercida com amor, compaixão, e dedicação quase exclusiva, pela maioria dos médicos. E, quase todos com enorme zelo pela arte e pela ética. Os médicos que optavam por exercer a sua arte em cidades interioranas, quase sempre onde nasceram e cresceram, eram clínicos, e ou cirurgiões gerais e obstetras, sendo amplo o seu leque de conhecimentos. Os que optavam por alguma especialidade, ou ficavam em Belo Horizonte ou se transferiam para cidades interioranas maiores, onde encontravam boas condições para exercerem a sua arte. O importante é que, de uma maneira ou de outra, eram vocacionados (e não “profissionais” …) dedicando suas vidas a curar quando possível, aliviar quando pudessem, acolher e confortar, sempre.
Os anos voaram, e já percorremos um quarto do novo século.
Hoje, as 25 Faculdades de Medicina que existiam no Brasil nos anos 60, somam 353, fora as que estão aguardando autorização para começar a funcionar. Nos anos 60, éramos 71 milhões de brasileiros e 58 mil médicos (1,22 para cada 1.000 hab.). Hoje somos 190 milhões de habitantes, e um pouco mais de 500 mil médicos. O que dá uma proporção de 3,8 médicos por 1.000 habitantes. Números que, se houvesse um padrão de qualidade, e de distribuição médica, nosso país seria um dos com a saúde da população mais bem cuidada. Mas não o é.
Para complicar essa matemática, nos últimos 20 anos o que parecia ser uma simples onda, tornou-se hoje num arrasador tsunami: a invasão da estética em diferentes áreas de saúde, engolfando médicos de várias especialidades, enfermeiros, odontólogos e biomédicos (não sei exatamente o que é isso…). Para infernizar ainda mais essa catástrofe, entraram no roldão, esteticistas, e práticos em tratamento alternativos. Contudo, o mais preocupante é a debandada de médicos de diferentes especialidades, abandonando o que chamamos de “tratamento de doenças” para a comodidade e o faturamento, bem mais vantajoso, dos “tratamentos estéticos”. Especialmente aqueles denominados “minimamente invasivos”, constituídos por procedimentos passíveis de serem feitos fora de hospitais – de custo elevado – e realizados em clínicas particulares, em consultórios, e até em ambientes totalmente improvisados. Não sem razão, com número de maus resultados cada dia mais elevados. São cirurgias de menor porte e, principalmente, as injeções para paralisação seletiva de músculos (Botox), e preenchimentos com as mais diferentes substâncias, algumas bastante perigosas como o PMMA, atualmente foco de processos para a suspensão legal do seu uso, em função de suas graves complicações, e até óbito. O pior é a glamorização desses procedimentos que passaram a ser chamados de “harmonização”, especialmente os feitos na face, mas também em outras partes do corpo, atraindo mais e mais incautos.
Como consequência desse tsunami, conseguir hoje uma consulta ou tratamento com diferentes especialistas médicos, especialmente em convênios, passou a ser como achar uma agulha no palheiro. Afinal, muitos deles, seduzidos por esse filão bastante lucrativo, já se descredenciaram de convênios, que não autorizam tais procedimentos, ou então reservam mínimos horários para atendimento realmente médico, em suas especialidades de origem. Na Cirurgia Plástica, que exerci por 50 anos, quase não se encontram especialistas dedicados à correção de defeitos congênitos, traumatologia facial, cirurgia de mão, reconstrução pós mutilações e tratamento de queimados. Quem precisa de um atendimento mais urgente, tem de se contentar com as longas filas em postos de saúde, ou aguardar semanas ou meses para agendar uma consulta com quem ainda exerce a verdadeira medicina. E dentre esses poucos, alguns aproveitam a sua escassez, e sua notoriedade, para elevar astronomicamente os custos do seu atendimento, elitizando-o e inviabilizando-o para a esmagadora maioria da população.
Assistindo a esse triste espetáculo, descubro que a medicina (de propósito, em maiúsculas) hipocrática, vai se extinguindo como um triste por do sol, num fim de tarde anuviada.
*Médico e Escritor, membro da Academia Mineira de Medicina, Emérito da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, Membro da Academia Campo-belense de Letras. Autor de vários livros de ética, crônicas e dois volumes de suas memórias, disponíveis pelo e-mail: evaldo.edite@gmail.com